quinta-feira, 26 de abril de 2018

ERA UMA VEZ UMA VILA - HISTÓRIA 2 - ERA UMA VEZ UM BEIJO


Inocente está com seus 9 anos de idade, loirinho, cheio de sardas, serelepe, e muito bobinho em certos assuntos..
Safadinho, também com 9 anos, loirinho, sem sardas, mais serelepe que Inocente e já bem espertinho para as coisas do coração.
Os dois eram grandes amigos, moravam numa pequena vila, estavam sempre juntos: na escola, nos rios, nas lamas, nas correrias, nas brincadeiras de Tarzan e de índio.
Safadinho se apaixonou pela menina mais bonita da escola e, podem ter certeza, a mais bonita da Vila, pelo menos para ele. Depois da aula ele se reunia com o Inocente e falava somente da menina mais linda, só que, apesar dele já ter se apaixonado por várias meninas, nunca beijou, e isso estava lhe afligindo muito, ele tinha que beijar a menina mais linda.
Os dois se encontravam atrás da Igreja após a missa de domingo, lógico por pouco tempo, porque os pais dos dois já chamavam para irem embora. Mas nesses encontros curtos ele tentava beijá-la e não conseguia, na hora H faltava coragem, ele pensava: “vai que eu acabe mordendo ela, e se ela não gostar, e se alguém nos vê, e se...”.
Com todo esse receio ele pediu ajuda para Inocente..
- Inocente, você tem que me ajudar, pergunte ao seu irmão mais velho como se beija? Ele já deve ter beijado muito.
Inocente concorda e vai perguntar ao seu irmão. Para tirar sarro deles. o irmão ensinou alguns passos de beijos para os dois:
1 – Você tem que começar beijando uma laranja, mas tem que ser bem romântico, tem que passar a língua na laranja;
2 – Treinar no espelho, beijando-se a si mesmo na imagem, cuide para não se apaixonar por você mesmo;
3 – Pegue um sapo ou uma rã e beije a boca dele, se for fêmea é melhor, se for macho cuide para que não se transforme em príncipe porque senão você terá que casar com ele;
4 – O quarto passo e último é mais complicado: você terá que treinar em alguém, como é difícil encontrar uma menina para treinar, tem que fazer o treino com seu amigo
Safadinho escreveu tudo num papel e começou com os primeiros passos. O primeiro foi fácil, mas como as laranjas eram muito cheirosas e apetitosas, as primeiras ele não resistiu: nas primeiras tentativas de beijo, ele descascava com os dentes mesmo e comia toda a laranja. No espelho ele se achava, como um narcisista, ele esqueceu do conselho do irmão de Inocente de não se apaixonar por ele mesmo, tanto que na sala de aula, pensando em sua imagem no espelho, tentava se beijar e fazia barulhos com a boca, os alunos e a professora ficavam olhando para ele assustados.
No terceiro passo começou a complicar: beijar um sapo? Como achar uma sapa? Mas a vontade de beijar a menina mais linda era tão grande que ele encarou esse desafio. Achou um sapo perto do ribeirão, com a ajuda de Inocente conseguiu pegar o sapo, não sabia identificar se era macho ou fêmea, e disse:
- Vai esse mesmo, hoje eu aprendo a beijar.
- Mas tem o quarto passo – disse Inocente..
Safadinho olhou para o sapo, o sapo olhou para ele e começou a coaxar. Ele levou um susto e acabou soltando o sapo, mas conseguiram pegar outro. E lá foi Safadinho, boca aberta, sapo na mão, foi se aproximando e os lábios de um se encontrou com o do outro, os dois se assustaram, ele pensou: “Que coisa gelada!”, o sapo também pensou: “Que coisa quente!”e com o susto ele soltou o sapo e o bicho fugiu rápido.
Depois de tudo isso faltava somente o 4º passo, como fazer? O melhor amigo que tinha era Inocente, mas provavelmente não queria nem saber disso. A insistência foi tão grande que Inocente disse que faria, mas só uma vez. E lá foram os dois, Safadinho fechou os olhos e começou a se aproximar dos lábios de Inocente, no pensamento dele ele dizia: “É a menina mais linda, é a menina mais linda...”. Quando os dois estavam bem perto o irmão de Inocente que assistiu a todos os passos escondido, se rolando de rir, interrompeu, dizendo que não precisava fazer isso, que ele estava pronto para beijar..


sexta-feira, 20 de abril de 2018

ERA UMA VEZ UMA VILA - HISTÓRIA 1 - ROMÂNTICOS E SONHADORES DA VILA

Era uma vez uma Vila, uma vila pequena como tantas outras num país chamado Brasil. Essa vila tinha muitas pessoas interessantes. Eu nasci nesta Vila, sou o nono filho de dez que meu pai e minha mãe tiveram em seus 40 anos de casados. E é sobre eles que escreverei primeiro. Eles eram um casal sonhador e romântico.
Eram tempos difíceis. A Vila, como todo o Brasil, estava sob um regime político ditatorial através de um governo militar. Meu pai não se conformava com as injustiças impostas por esse governo. Lutava muito para a Vila ter uma escola decente, apesar de não ter muito estudo, pois estudou somente até a segunda série primária, e sua esposa, minha mãe, estudou até a terceira série primária, mas achavam muito importante seus filhos e as outras crianças da Vila estudarem. Ele era o Presidente do grupo de pais da escola, e muitas vezes tentava fazer os pais se manifestarem juntamente com ele, pedindo melhoria na qualidade da educação, na melhoria do prédio escolar e outras melhorias para a Vila. Muitas vezes o delegado de polícia, que era compadre de meu pai, aparecia em casa para ameaçar meu pai e minha mãe, ele dizia ao meu pai que era melhor eles se acalmarem senão vinha a polícia do exército e levaria os dois, se isso acontecesse como ficaria os seus filhos? Nós, filhos, ficávamos escondidos num quarto ouvindo tudo, os mais novos, como eu, choravam com medo de perder os pais. Mas meu pai sabia que o delegado, seu compadre era gente boa e não ia seguir adiante com as ameaças.
Meu pai era também presidente da Igreja, ele e minha mãe eram muito religiosos, eram devotos da Sagrada Família, iam todos os domingos na missa e levavam seus filhos. Era muito legal ir de mãos dadas com meus pais para a missa, após a missa tinha o almoço de domingo, apesar de sermos pobres, pois meu pai era ferroviário e não ganhava lá muito bem, tinha carne, geralmente de galinha ou porco que minha mãe criava com a ajuda dos meus irmãos mais velhos, era uma festa o domingo, alguns domingos tinha até gasosa.
Mas um dia aconteceu o que todos nós temíamos: veio a polícia do exército e levou meu pai. Nós choramos muito, imploramos que não levassem nosso pai, mas não adiantou. Ele ficou preso durante um mês, minha mãe chorava muito, pois sentia a falta de seu amado e também se preocupava muito com o que poderia acontecer com ele. Foi um mês muito difícil para todos nós, mas quando meu pai voltou foi uma festa, apesar de ele estar muito magro e debilitado.
Meu pai contava para nós, após o término da ditadura militar, o que essa “polícia” fez com ele: foi amarrado num tal de pau de arara, levou choque elétrico na genitália, até urina ele teve que tomar, e o que eles queriam de meu pai? Que ele falasse quem estava por trás de reivindicações simples, como uma escola melhor, médico para atender na Vila, estradas melhores. Meu pai dizia que não tinha ninguém, porque não tinha mesmo.
Meu me contou outra história que me aterrorizou e me aterroriza até hoje: “Eu estava numa sala com mais dois presos no DOPS em São Paulo, quando chegou o chefão fardado e nos disse: ‘Estou com os filhos de vocês, três lindas crianças, o mais novo tem 1 ano e oito meses, o do meio tem 4 anos e o mais velho tem 9 anos, se vocês não abrirem a boca e não entregarem seus amigos “terroristas” vamos dar choques neles. Vamos lá onde se escondem seus amigos?’ Eu gritava e dizia a eles que não tinha nenhum amigo “terrorista”, cada vez que eu dizia eles davam choque numa criança que gritava de dores. Nós três não conseguíamos ver as crianças, mas as idades das crianças batia certinho com filhos que tínhamos. Os outros também estavam chorando muito pois também não sabiam de amigos nenhum. E o chefão fardado com um outro fardado torturavam aquelas crianças. Sempre havia três choros diferentes, até que um choro se calou, ouvimos o chefão fardado dizer: ‘Droga o de um ano e oito meses morreu’. O preso que estava ao meu lado se desesperou e começou a gritar e se debater, as mãos dele ficaram ensanguentadas, pois estava amarradas bem firme, os dois fardados começarem a bater nele com um porrete até que ele se calou, também havia morrido igual a seu filho. Eu e outro preso chorávamos baixinho e pedíamos misericórdia pelos nosso filhos. O chefão fardado voltava a dizer: ‘Querem misericórdia então abram a boca. Se não abrirem a boca o choque agora vai ser no saco de seus filhos e no pintinho deles.’ Nós novamente dissemos que não sabíamos de nada. E eles deram os choques novamente e as outras duas crianças também morreram. Eu fiquei me remoendo de culpa por meu filho ter morrido porque eu poderia ter mentido e entregue qualquer um dos meus amigos, mas não tive coragem. Só quando voltei que vi que não era meu filho que havia morrido, ao mesmo tempo me senti alegre e aliviado por meus filhos estarem ali vivos e com saúde, mas também fiquei e fico às vezes desesperado por saber quem eram aquelas crianças, três pais e três mães ficaram sem filhos.”
Meu pai contou essas e muitas outras histórias terríveis.Eles acabarem liberando meu pai porque se convenceram que realmente meu pai era um sonhador isolado que não ia conseguir muita coisa.
Meu pai mudou um pouco, mas continuou firme em suas reivindicações, algumas coisas ele conseguiu: foi construído um novo prédio escolar de madeira, um posto de saúde com médico uma vez por semana.
Meu pai era um contador de histórias e nos contava muitas histórias, uma que achei interessante e que me deixava com medo era essa: “Ele disse que foi pescar, até aí tudo bem, era feriado, não estava trabalhando, mas era sexta-feira santa, e esse dia tinha que ser respeitado, não podia gritar, não se ouvia rádio, se comia pouco, era um dia de reflexão e luto, pois nesse dia se lembrava da morte de Jesus Cristo. Mas meu pai, apesar dos protestos de minha mãe foi pescar. Quando terminou de pescar já estava escuro. Voltando para casa, no meio do caminho alguma coisa pegou na sua canela. Ele tentava andar e não conseguia, uma mão segurava e puxava sua perna. Ele perguntou que o estava segurando, uma voz disse que queria saber o que ele estava fazendo. Meu pai disse que tinha ido pescar e que estava voltando para casa. A voz meio cavernosa, disse que ele estava abusando de um dia tão importante e por isso teria que ir com ele. Meu pai implorava, mas nada adiantava pois a mão que segurava sua perna era forte e estava o puxando para dentro de um buraco. Ele começou a implorar e pedir misericórdia para Deus. Quando estava com a metade das pernas no buraco, ele conseguiu dar um coice na cara da coisa e se virando para o buraco viu a cara da coisa e se arrepiou todo de medo, porque era muito amedrontador. Mas essa coisa hipnotizava as pessoas e meu pai ficou olhando fixo para a cara da coisa, mesmo sendo aterrorizante olhar e a coisa dizia: ‘Venha para o buraco comigo’. Mas meu pai conseguiu acordar e antes da coisa o pegar novamente se levantou e saiu correndo, chegou em casa todo arrepiado fechando todas as portas e janelas.” Depois desse dia nunca mais meu pai brincou com o dia da Paixão de Cristo.
Meu pai e minha mãe foram muito felizes nesta Vila, tiveram uma família numerosa, contribuíram com o crescimento das pessoas desta Vila, e em 1985 tiveram uma das suas grandes alegrias: o fim da ditadura militar, onde participaram ativamente do movimento das “diretas já” que acabou com 20 anos de ditadura, e quando eles votaram pela primeira vez para presidente ficaram tão alegres que tiraram até uma foto, apesar de terem sido enganados pelo “Caçador de Marajá” Fernando Collor de Melo.